Subject: Carta ao director
(para publicação)
Caro
José Manuel Fernandes:
escrevo-lhe
a propósito da cronista Helena Matos, que mantém uma coluna no seu jornal, mais
especificamente motivado pela leitura do texto intitulado "aí vamos nós montados
a cavalo numa bicicleta".
Ora,
devo desde logo fazer a ressalva que não sou um apreciador da prosa da autora.
Creio que o tom crispado, empertigado e conservador (ou, como se dizia dantes, e
eu gostava, reaccionário) não é feliz. Mas em geral não me incomoda, limito-me a
ler outra coisa.
Hoje,
porém, o assunto até me interessava (ando irregularmente de bicicleta em Lisboa,
e gostava de ter condições para andar mais) e por isso li o texto. E voltei a
não gostar, claro, e por isso junto alguns comentários.
A
autora faz uma série de confusões sobre o Livro Verde para uma nova Cultura de
Mobilidade Urbana, que convém esclarecer. Penso poder fazê-lo por ter estado
presente na sessão de discussão e por posteriormente ter lido a sua sucessiva
redacção.
Em
primeiro lugar, o Livro Verde não foca exclusivamente a questão da bicicleta, ao
contrário do que a articulista quer fazer parecer. Outras questões têm muito
maior destaque, como sejam os transportes públicos e as deslocações a pé. Não se
percebe por isso a sanha contra as bicicletas. Aliás, as bicicletas são apenas
referidas como "alternativa ao automóvel", não se pretende que o substituam.
Suponho que a autora rejeite em absoluto algum dia andar de bicicleta. Jamais!
Está no seu direito de ser intransigente. Mas, por favor, dê espaço a quem quer
andar mais de bicicleta, quer já o faça ou não. Chama-se a isto democracia, mas
porventura não é facilmente compaginável com convicções de que se tem sempre
razão. Mas era melhor que fosse...
Mais
à frente, diz a autora que Lisboa não é Amesterdão. Grande verdade. Mas alguém
queria que fosse? Por mim, não, gosto de Lisboa, mais do que de Amesterdão, até.
Mas o facto de não serem iguais faz com que tenham de ser totalmente diferentes?
Faz com que, se se anda de bicicleta com normalidade lá, cá se tenha de ser uma
espécie de proscrito? Não creio, e acho mais um caso de alguma falta de
flexibilidade mental.
Noutro
trecho, a autora afirma enfaticamente que "espera uma exemplificação prática
(...) [da] promoção da cultura da bicicleta para quem vive na R. da Pretas e
trabalha no campo dos Mártires da Pátria". Ora, em primeiro lugar, este
argumento, recorrendo a um caso isolado e extremado, pretende ser caricatural, o
que não abona a favor da tese da autora. Porém, mesmo assim, penso que tem uma
resposta simples e cristalina: bastaria que a Carris instalasse no elevador do
Lavra uns suportes para bicicleta. Assim, este putativo trabalhador poderia
subir com a bicicleta no elevador e, mais tarde, descer calmamente, desta vez
apenas com a ajuda da gravidade. Com mais algumas iniciativas simples como esta
poder-se-iam vencer grande parte dos contra-argumentos orográficos que, à falta
de melhor, são sempre os primeiros a saltar quando se fala de bicicletas.
Dirigindo-me
de novo ao director, queria pôr em causa esta opção recente do jornal de
recorrer, na minha opinião com demasiada frequência, a cronistas vindos ou
associados a blogues, como creio ser o caso de Helena Matos. Acontece que me é
dado crer que, para ganhar um nome na blogosfera, é necessário assumir um papel
exagerado, marcado, truculento e caricatural. Assim se fidelizam os leitores
virtuais. Mas será que a mesma estratégia (como claramente assume esta autora)
também é defensável num jornal generalista como o público? Quererá um jornal
reproduzir o mesmo tipo de opiniões e polémicas inflamadas? Não creio, e por
isso penso que esta opção editorial é infeliz.
Com
os melhores cumprimentos,
Luís
Mota
Comentários
Artigo inflamado
Escrevi no meu blogue dois artigos furiosos e inflamados a responder à letra à Helena Matos. Acho que a resposta do Luís Mota é melhor, mas isto foi o que me saiu na fúria do momento :p
http://nadirdostempos.blogspot.com/2008/05/investimento-pblico.html
http://nadirdostempos.blogspot.com/2008/05/investimento-pblico.html
De notar que o blogue Blasfémias, onde foi publicado originalmente o texto, é dos que faz uma campanha mais cerrada de ridicularização da bicicleta.
Pensamentos
E escreveu o Tiago Carvalho na mailing list nacional:
Não sei se todos seguiram o conselho do Luís. Ainda-me indago como é que bichos destes existem na comunicação social. Mandei o seguinte comentário ao director do Público (aquela da Rua das Pretas e Campo Mártires da Pátria veio direita para mim):
O jornal Expresso, citando um estudo europeu, citava Lisboa como uma das áreas metropolitanas europeias com maior densidade de vias rápidas e Portugal como um dos países que, por área de superfície, possui também um elevado número de auto-estradas. A conclusão do mesmo artigo concluía que, ao contrário de outros países, como a Irlanda, tal investimento em auto-estradas não era sinónimo de desenvolvimento. O paulatino aumento do preço do barril de petróleo e a correlação da crise da fome associada aos biocombustíveis seriam motivos adicionais para repensar uma estratégia energética para o país. O Livro Verde da Mobilidade publicado pelo IMTT é uma achega a tal orientação que se quer para o país, num sector responsável por consumir uma grande fatia das nossas necessidades de energia: os transportes.
Além das desvantagens já mencionadas e sem querer resumir Portugal a Lisboa, como faz a jornalista Helena Matos, diga-se que, como habitante nesta cidade e testemunha de todo o circo que é o estacionamento ilegal e a invasão do espaço público por parte do automóvel, medidas que combatam o uso abusivo do mesmo são inteiramente correctas, pecando apenas por serem insuficientemente agressivas. A autora, preferindo não enquadrar o documento do IMTT neste quadro estratégico, reservou grande parte do espaço a que tem direito a uma crítica verrinosa à bicicleta.
A jornalista falou em relevo e temperaturas como aqueles factores que impediriam um uso generalizado da mesma. Falou em Amesterdão e Bruxelas. Eu poderia enumerar Edinburgo ou Lausanne, com orografias mais desagradáveis que Lisboa. Ou Sevilha, tão ou mais quente que o Alentejo da juventude de Helena Matos. Todas estas cidades têm utilizadores de bicicletas e uma aposta clara na mesma por parte da edilidade. Poderia ainda referir que enquanto trabalhava como bolseiro em Mobilidade Sustentável fazia o percurso da Rua das Pretas até ao Campo Mártires da Pátria e depois até ao Instituto Superior Técnico de bicicleta, todos os dias e mais veloz que um autocarro. E poderia dizer que faltam condições para ciclistas em Lisboa e que os trajectos cicláveis da cidade não se resumem às mudanças de colina. E poderia afirmar claramente que a jornalista tem uma opinião completamente atávica e desinformada.
O facto, claro, é que Portugal não é só a Lisboa de caricatura da autora e o uso da bicicleta, como meio de transporte local, é uma alternativa viável à febre automobilística apoiada pelo tal progresso e desenvolvimento de betão e alcatrão de sucessivos governos.
Tiago Mesquita Carvalho